terça-feira, abril 11, 2006

DIANTE DE UM MAR GRANDE

De seguida mais um texto e imagens relacionadas com os nossos próximos convidados:

Uma visão de autores croatas

Nas relações europeias, Portugal é um país longínquo e, sobretudo, diferente pela sua exposição ao oceano. Embora a marinhagem determinasse consideravelmente o destino histórico, tanto do nosso povo como do povo português, e particularmente algumas das mais célebres páginas do passado, as consequências da orientação marítima poder-se-iam dificilmente comparar. A imersão mediterrânea tem proporcionado aos espaços (e ao povo) croatas uma medida das relações mais íntimas, enquanto a abertura atlântica tem estimulado nos habitantes de Portugal (e nos respectivos monumentos) os desafios e o entusiasmo das proporções universais. Para não mencionar o abismo verdadeiro que divide a ambição imperial lusófona com a sua realização estatal duradoira, e a dispersão comunal e regional do país croata com elementos espirituais, só em ideias, da coesão e das memórias profundas sobre a auto-essência antiga.

No entanto, “o país à beira do mundo”, o espaço da viagem “até-ao-fim” – como o poeta Tahir Mujičić metaforicamente nomeia Portugal – é particularmente atractivo para nós, tanto pelos contrastes claros, como pelas afinidades possíveis e o reconhecimento ao nível do valor cultural e da actualidade viva. Afinal, com pouco exagero afirmaremos que tanto o nosso país como Portugal foram até há pouco “as belas adormecidas”; que tanto um país como o outro têm participação peninsular, e que compensam certa periferia nas relações europeias (também paralelamente) com a originalidade e intensidade das soluções criativas. Sabemos que a fama dos nossos artistas não equivale sempre aos exemplos lusitanos; contudo, atrevemo-nos a pensar como Marulić pode exercer o mesmo papel que Camões, que Držić, de certo modo, não deve ser menos significativo que Sá de Miranda, que Ujević, em muita coisa, pode ser comparado a Pessoa. Seja como for, sem ambição competitiva, vemos Portugal como um espaço não muito grande, mas de intensidades extraordinárias, como uma janela europeia que dá para um mar imenso, como um território da tradição complexa e frustrações ultrapassadas da grandeza presumível.

Viagem a Portugal estimulou as vibrações criativas e as reacções adequadas de expressão no poeta Tahir Mujičić e no pintor Hrvoje Šercar. Lembranças e anotações foram transformadas em obra bem determinada, em poemas e gráficos que ultrapassam as limitações de ocasião. Podemos dizer que tanto o poeta como o pintor se sentiram inspirados com os ambientes da costa ocidental ibérica, e que encontraram nas cidades e vilas com o património cultural português as cenas e as situações para as quais sentiram inclinação especial, algo entre sensação de movimentos ambientais evidentes e positivos, e pressentimento que também lá poderiam sentir-se como em casa. Por isso, a sua participação neste mapa é pura e espontânea.

Ao poeta é dado o poder de evocar expressamente muitos elementos específicos, o que Tahir Mujičić aproveita abundantemente nos seus poemas evocativos, um pouco nostálgicos e um pouco cómicos. Em estilo de colagem, ele introduz no texto nomes de comidas e bebidas, nomes de interlocutores e transeuntes potenciais, toponímia da região e as cores características dos lugares visitados. As referências, só aparentemente, do relato de viagem pelo Porto e Coimbra, Cálem e Douro, enriquecem no fundo com o factor humano: pescadores e vendedores, marinheiros e ceramistas, turistas e meninas, e sobretudo com os velhos que o autor descreve com certa obsessão – tanto um velho “eterno”, como um dos velhos “futuros”. Mas o motivo conhecido dos velhos (para mim, o do poeta Šoljan) Mujičić desenvolve ou gradua com uma entoação bastante nostálgica (diríamos mesmo: o fado), com a rítmica narrativa e colocação dos motivos em frente do mar grande, o oceano, “uma coisa atrás da qual não há nada”, dando assim à integridade do poema o selo da experiência existencial. Normalmente humorístico e relaxado, Mujičić tocou os registos novos no seu ciclo português, não negando o seu engenho e facilidade de expressão, e colocou-os ao serviço das memórias elegíacas e de identificação afectiva com o mundo das distâncias aproximadas.

Por outro lado, o pintor tem possibilidade de anotar mais de imediato as formas e sinais recebidos. Hrvoje Šercar gosta de partir do visto e memorizado, mas ainda prefere e sente necessário transformar o motivo numa realidade nova. A construção emblemática de Belém, Coimbra, Porto e o Mosteiro de Jerónimos está praticamente inserida na sua circulação sanguínea, e ele renova-os, conforme a recordação, numa projecção elástica e orgânica. Na reconstrução desenhadora aproveitou as experiências das suas imaginações anteriores (“cidades invisíveis” calvinistas), mas também dos devaneios sobre os motivos bem conhecidos e adoptados no coração de Dubrovnik, Trogir, Zagreb... Quer dizer, estabeleceu as coordenadas histórico-geográficas, criou a cenografia certa (fantástica, embora fundada no real) em que então deixou entrar os exemplos humanos e animais: desde os bois que puxam o barco até ao diabo macaco que está sentado num barril; desde o acto feminino com as características de bruxa até ao cortejo dos participantes humildes, provavelmente a procissão medieval dos peregrinos, para não falar das figuras de cantores, apresentadores ou dos navios que parecem estar a orientar a integridade. O bestiário imaginativo de Šercar e o florilégio temático ainda é ampliado com a série de iniciais inventivas, feitas para avivar a factura textual, enquanto a sua iconografia fortalece também o farnel comum e reconhecível do círculo europeu ocidental e a componente concreta portuguesa. Por ocasião de trabalhar no meio gráfico este pintor aproveita também para a combinação dos diferentes níveis (diferentes níveis e fases de realização), com que adquiriu a possibilidade de citar directamente, incrustar os trechos fotográficos, não ficando impedido na emanação do temperamento do manuscrito próprio, na manifestação do estilo individual. Pelo contrário, o diário icónico de Šercar sobre os caminhos portugueses é mais uma afirmação de coesão da sua visão dinâmica e diacrónica do fenómeno, uma prova de segurança do verdadeiro ponto de vista artístico.


Tonko Maroević





1 comentário:

Anónimo disse...

Este texto está bem esgalhado!