Hoje regressou ao Brasil (de onde é natural) Antonio Naud Júnior, poeta, escritor e Menino d´Avó desde os primeiros tempos. A sua presença foi marcante, a sua ausência será muito sentida. Como um dos principais impulsionadores deste blog deixamos a justa, merecida e sentida homenagem a alguns dos seus textos poéticos. Mesmo com um oceano de distância sabemos que continuará presente em espírito e esperamos em texto!
Um Abraço e um até breve (é assim que nos despedimos daqueles que não esquecemos)
PARA CADA UM A SUA VERDADE
acendem-se falésias
sob o mundo de inês
(sim inês de castro a concubina untada de mel!)
no quebra-vento
na água salgada
no caminho de mágoas
que leva a lugar nenhum
e a luz? a luz a luz
onde a sophia luz?
onde os sóis as estrelas as luas
dentro de mim e de ti?
as rochas calam-se calam sempre
calam todos os demais
num silêncio esmagador
de medo renovado
sem rosto nem perguntas
como ontem como hoje como amanhã
antigas almas na escuridão
antigos olhos saramago
em naus à caminho de noites de fado
rendição e solidão
acendem-se pássaros azuis
sob a imensidão de mar e céu
talvez uma última chance para compreender
talvez uma última chance para amar
cansado de sombras
cansado do viver por viver
digo calma calma é preciso calma
eu e todos os demais
outros e iguais e provincianos
estes murmúrios equívocos
silêncios de fantoches
ergue-se a esperança em gaivotas imóveis na areia!
na raiz-divina na sabina-das-praias no chorão!
no lagarto-sardão no rabirruivo-preto!
em todas as coisas helder da vida!
calma calma é preciso calma
de nada adianta esta ofendida angústia
a verdade é uma colméia de complexos
besuntada de variações obscenas
de nada adianta a florbela melancolia
tudo cai no esquecimento
poucas vozes são realmente importantes
e um e a um os sonhos cintilarão outra vez
arrancam-me o al berto coração
que não sabe saber fingir?
invento outro!
ainda tenho tempo para alvéolos sustos
garante-me pessoa
ainda tenho tempo para outros amores
calma calma muita calma ainda tenho tempo
para caminhar noite adentro
estremecendo como uma virgem
garante-me llansol
renovado coração quente
pés na estrada poética
galopando o cavalo eugénio dos sonhos
Antonio Júnior, Praia da Aguda, outubro de 2005.
Junho & Juny
Nits (*)
incêndio sem chamas.
abro os olhos e vejo o que está aqui.
durante minutos, o pensamento exato, na trajetória da
fumaça de um cigarro que se dissolve
no lamento de tristão.
pré-ocupação.
seu agudo
canto de sereia
faíscas febris de noites inúteis,
semidestruída
reputação (mas o que é a reputação?)
já não faz falta sentir
a língua fria
da melancolia.
recebido com ramos de lírios
por parábolas e ofensas,
neste instante,
o éden é a meta,
erguido aos céus de pelúcia
o pensamento oculto
bendito em noites
de bestas interesseiras
em noites de equilíbrio,
de nervos de aço,
de freqüência.
(*) Nits: Noites em catalão.
Outubro & Octubre
Dolor (*)
chegaram todos, não falta ninguém.
(estão presentes poetas nunca lidos e
suas intenções desleixadas).
veio também um anjo
com lágrimas do tamanho do lustre imperial,
penetrado de saudades, sensibilizado
pela falta de respostas.
não ditas por quem?
“já passou”, ele diz,
enxugando o rosto.
a dor talvez seja só um excesso
de uísque, lástimas e tristezas.
já passou.
“eu creio em algo que você não crê”, digo.
a dor declarada desfaz-se no seu sorriso
e suaviza a imagem encantadora.
(*) Dolor: Dor em catalão.
António Júnior, in “Calendário Azul”
montanhas são vozes, falam,
falam,
falam em silêncio
falam emoções, emoções esquecidas
falam através de curtas e definitivas frases:
o amor é uma águia que voa alto, muito alto
é uma delas.
Entre elas, numa clareira, irradia-se um carvalho
único e imortal
está assim, fincado na terra dura
cúmplice durante séculos do silêncio,
constante em sua verdade todas as nossas esperanças
vivem nele
as minhas, as suas
e as dos outros.
é um segredo da nobre arvore
que sabemos e não sabemos.
e vou, não nego: as montanhas
são um caminho interior.
António Júnior, in “Se um Viajante numa Espanha de Lorca”, Pé de Página Editores, Maio de 2005.
A ideia já é antiga. Reunir poetas, actores, leitores, ouvintes. Reunir seres humanos em redor da mais acolhedora das lareiras: a Poesia. Saudosos de outras tertúlias que o tempo consumou e consumiu, sentimos chegada a hora de retomar o hábito de nos desabituarmos da vida em prosa. Ei-nos regressados ao convívio das palavras!
sexta-feira, outubro 14, 2005
HOMENAGEM A ANTONIO JUNIOR
terça-feira, outubro 11, 2005
SESSÃO DE 5/10/2005:
Esta sessão marcou o início de uma pequena interrupção ( a sessão de dia 19 não se irá realizar) dos Meninos d´Avó pois a Casa da Avó entrou (muito merecidamente) de férias, apesar deste interregno as actividades poéticas e culturais não parám e delas iremos dando conta no Blog. Entretanto fica o aviso aos interessados que no reinício esperam-nos sessões que estão a criar grandes expectativas! A seu tempo iremos divulgando os próximos convidados!
A Poesia está na rua. Não Pisar.
terça-feira, outubro 04, 2005
IMPEDIMENTO IMPREVISTO
Por esta contrariedade pedimos desculpa, mas são acontecimentos que nos ultrapassam!
A Poesia está na Rua. Não pisar.
sábado, outubro 01, 2005
PRÓXIMA SESSÃO:
Também será discutida a problemática, levantada por Adriana Jones, relativamente à limpeza da serra de Sintra. Foi sugerido um passeio no dia 8 de Outubro (sabádo) de manhã pela serra para in loco verificarmos o estado de desleixo. Mais desenvolvimentos na próxima sessão dos Meninos d´Avó dia 5 de Outubro.
A Poesia está na rua. Não Pisar.
SELENOGRAPHIA IN CYNTHIA
por João Rodil
Eu já vi muitas pessoas em Sintra. Vi gente que passa, gente que fica, gente que lhe admira a Natureza e os monumentos, mas o que levam dela é apenas uma vaga lembrança de cheiros e de verde, ou umas fotos postais, clichés da vida mundana e vazia atirados em seguida para o fundo de uma gaveta esquecida.
Mas Sintra não é um lugar para se ver só com os olhos. Ou antes, Sintra é muito mais um lugar para se sentir do que para se ver. Porque a sua imensidão ultrapassa o que a nossa pobre vista alcança. Porque a sua mensagem é cantada em linguagens veladas. Porque é um lugar com espírito.
Por isso, das muitas gentes que já vi em Sintra, apenas conheci algumas, poucas essas, que ao percorrerem o sei corpo majestoso de deusa tivessem comungado com ela. É que só aqueles que acreditam na transcendência desta Serra da Lua um dia poderão penetrar verdadeiramente nela.
E tal como a Lua, senhora e rainha de todas as marés, também Sintra é um grande íman que atrai aqueles que sabem sonhar quando contemplam o seu corpo serpentário. Jorge Telles de Menezes é um poeta chamado por ela. E, logo que chegou a ela, soube escalar o Promontório para beijar a Lua.
Quero eu com isto dizer que Jorge Telles de Menezes, ao escrever Selenographia in Cynthia, não se limitou a construir uma aprimorada obra poética, a lançar versos aos outros, plenos de lirismo e musicalidade. É que a Serra da Lua segredou-lhe alguns dos seus mistérios, deixou cair o véu e mostrou-se por dentro ao poeta. Nua e perfeita em todas as suas formas e símbolos.
Por isso, aquilo que estamos a beber quando lemos esta Selenographia é uma água baptismal que nos pode renovar, que nos deve servir de catalisador para regressarmos ao ser primordial, ao útero da Terra-Mãe, à consciência profunda dos valores mais sincréticos do Homem Universal.
Sintra foi, durante milénios, terra de fronteira entre o mundo conhecido e o mar ignoto, o abismo azul povoado de lendas e monstros. E os povos caminharam até a essa zona limítrofe, uns atrás dos outros, sempre em demanda peregrina e em pleno respeito e adoração pelas forças telúricas, aquáticas e ígneas que nestas montanhas da Lua se conjugam.
É esse respeito primordial que nos surge em Selenographia in Cynthia. É esse renascer interior do homem de hoje, a busca do Graal em nós, o rebuscar das emoções verdadeiras no mais secreto da nossa intimidade que o poeta Jorge de Menezes nos sugere.
Inclusivamente, chega a apontar-nos as veredas que nos poderão levar a esse lugar de início. O espelho e a água. Um, como objecto de retorno, de reflexão, para que nos conheçamos a nós próprios. Outra, a água, como elemento renovador e purificador por excelência, gerador da vida e espelho do céu, morada atlante de tritões, sereias, ninfas e tantos outros seres que fazem parte do imenso bestiário sintrense.
Não é de estranhar, portanto, que a personagem principal se chama Till Espelho de Água, ou antes, uma personagem multiplicada no seu Replicante. Ou o surgimento de Alice, aquela mesma do País das Maravilhas, a «musa ninfeácea do autor canhoto».
Quando li, pela primeira vez Selenographia in Cynthia, recordei de imediato alguns dos espíritos elevados que escreveram sobre Sintra, sobretudo aqueles que o fizeram de uma forma poética e dramática. Camões e Eça, aliás personagens que integram a obra, mas também outros nomes me saltaram à memória, como Teixeira de Pascoaes, António Quadros, Frei Heitor Pinto, João de Barros e, muitos especialmente, o mestre Gil Vicente e as duas peças em que dedicou maior atenção a Sintra: O Triunfo do Inverno e a Farsa da Lusitânia. Ainda me lembrei de Byron, de Southey, de W. H. Auden e de Christopher Isherwood, estes últimos mais pela concepção dos chamados dream poems, muito embora também eles tenham sido tocados pela Serra da Lua.
Mas tudo isto aconteceu-me apenas numa primeira leitura. Porque depois veio a verificação e a certeza da originalidade e profundeza da escrita poética e dramática de Jorge Telles de Menezes. Há ali um fluir de sinais que nos conhecem por dentro, um toque de mágica que nos faz acreditar nos amanhãs impossíveis. O poeta tinha estado, de facto, no útero do grande santuário da Lua.
Não quero especular sobre esta Selenographia in Cynthia. Não quero, nem devo. Tenho a certeza que muitos o farão através dos tempos, pois estou em crer que éobra do presente com mensagens do futuro. Acho que cada um de nós deve fazer a sua leitura e buscar o seu próprio entendimento.
É esta, afinal, a grande missiva do autor. Que procuremos todos a flor, a nossa flor, com toda a valorização espiritual e hermética que ela comporta.
Uma coisa eu posso afiançar. É que o Promontório da Lua está cheio de campos de flores. Basta descobri-las com os olhos do coração.
Azenhas do Mar, Solstício do Verão de 2003
HYNO A CYNTHIA
Suave deusa da ilha
saturnina cynthia celta
romana vestal do ocaso
moura alma encantada
deusa que caças no bosque,
revela-me a tua face!
Eterna criança da lua,
amada e trágica ninfa,
revela-te!
E ao teu laço em desaperto.
A mim,
que me consigo mover
(como um fantasma)
por tuas árvores-estelas
teu mapa de muros vivos
tua cascata de orquestras
tua fonte, ao meio-dia estranha,
teu perfume de montanha
em mares de um vento d´além,
pelos palácios, veloz –
e como nuvem branca
ao fundear no teu colo,
renasço
no teu misticismo pagão
adorando a lua, bacante,
e sou o
noivo desvairado ao luar
devindo os olhos de um poeta
em viagem para a luz.
A mim!
Revela-me!
Mulher telúrica e virgem,
de teu corpo o selo
de tua fonte os amores
no santuário dos fetos
na cynthia dos eremitérios
dos conventos e das tabas,
em oriente,
dentro
de ti.
Revela-te!
a mim,
que padeço desta insónia
de amar tua branca aparição,
hárpica cynthia,
dá-me a visão, uma vez,
da tua face…
… e enterra meu corpo frio,
quando morrer, mais tarde,
dentro de ti,
antes do céu,
para que eu leia
no teu cabelo
frases com pena,
folhas com música
eternidade escrita
por um poeta.
E que depois de saciado na terra nua,
na harmonia do bosque mágico
em ritual sagrado e sensual
na clareira magmática eu renascesse
da pira quente do megalito
a um ritmo extático de cítaras
que a minha voz transformassem –
oh deusa mais pura, selena,
na de um poeta da lua.
JORGE TELLES DE MENEZES, in “Selenographia in Cynthia”, Hugin editores, Agosto de 2003.
CARTA A UM CAMARADA MORTO DE INGLATERRA PARA QUE RENASÇA EM SINTRA NA CASA DA AVÓ
Jorge Telles de Menezes
Não viste, George, no meu país a memória de um tempo em que fomos irmãos, em que fomos iguais; então combatíamos em contendas de cavalaria no Minho e no Lancastre, para conquistar corações e afinar pontarias para outras guerras; chamavam-nos antanho os Magriços. Nada do teu olhar pousou sobre a arca da aliança forjada na defesa de nosso torrão sagrado, nem por teu relance passou essa heróica união de armas e de sangue na Batalha para que sempre fôssemos independentes. Nem da estirpe comum soubeste, camarada, que levou essas naus impetuosas com a cruz herética do templo abaixo de todos os céus do mundo; não, não soubeste dessa arremetida no sonho, na utopia que teu conterrâneo More nos ofereceu. Tinhas razão, porém, nós é que no século em que vieste vivíamos sob o peso da saudade, saudade de tudo, até da própria vida... Vivemos demais em curto tempo, envelhecemos precocemente, fizemos o nosso melhor, esquecemo-nos da reforma, e se fomos iguais na infância, não passamos hoje de um velho marinheiro, que indiferente à higiénica ordem da tua civilização, contempla absorto e mudo o mar, um irmão teu que se tornou irreconhecível para ti, velho Albião, que doseaste bem tua energia, cresceste rapaz comportado, com boa educação, deitas hoje as cartas e dás meridianos sobre a mesa do mundo - apesar de nós sabermos de teus fáusticos pactos... Nossa diferença consiste em que o mundo em que tu ages e brilhas com glória já não o vemos, por isso nos deixa indiferente o teu moderno sucesso. Eu vivi a idade do verdadeiro ouro, aquele de que é feito o sonho, tu viveste na idade que comerceia com o que foi o meu sonho, transformando-o no ouro vil da matéria.
Eu estou há muito reformado da História, e como a reforma é uma miséria, vou vivendo de uns biscates em frente ao mar. Tu és um burguês rico e lustroso, jovem e confiante nas tuas certezas práticas sobre o mundo. O teu drama moderno nada diz ao meu silenciado ser, entendo-o perfeitamente, mas a minha religião, que consiste em não ter qualquer religião, não me provoca histeria. Tenho costumes que respeito, como ensinava Confúcio. Não me esqueço, contudo, do teu outro lado, oh fugitivo de ti mesmo, cantor exilado da liberdade absoluta, rebelde contra a própria ordem que te formou. A tua neurose, contudo, eu não partilho, o conceito de ordem na minha mente já não existe, eu ando em barcos à vela, meu rei é o vento.
Fizeste bem em vir visitar-me, inventaste o conforto e o fair-play, mas eu não gosto dos teus jogos, por isso dispenso também as tuas regras. Que pena não ter havido cinema nem música rock na tua época, terias vivido como um herói da imagem e mais um derrotado do coração. Afinal, tinhas que te sacrificar, oh prometaico herói moderno; eu morri nas Filipinas, lembras-te? quantos séculos antes foram? Vem, entra no círculo dos poetas-heróis, ali tens Camões, ele falará contigo. Vem, arrogante irmão mais novo, não me impressionas com teu drama burguês, nós compreendêmo-lo hoje, vem, volta para nós aqui em Sintra que amamos todos os românticos, vais ver que ainda não viste o que julgavas já ter visto.
Jorge Telles de Menezes, 17 de Maio de 2005.
ANTÓNIO CARLOS CORTEZ
Afinal numa definição muito afim de certos poetas portugueses (uma Sophia, um António Osório, um Eugénio…), poesia será a preservação da árvore do real, sendo o real a raiz afectuosa em cuja matéria solar a arte poética, a visão do mundo de quem humanamente se vai mostrando… É que também a poesia tem para mim este não-sei-quê de revelação nunca revelada, constituindo um mistério fascinante essa mesma raiz, essa mesma matéria, essa mesma arte; fascínio diante do qual ficamos à espera que um poema aconteça!
António Carlos Cortez
que sombra tem o limite da sombra e
que nome possui o teu nome além do meu
que folha é o papel pressentido na pele
que incontida beleza de águia de rapina
olhar de sol e luz é o nome do teu nome
que arquitectura é o fio de líquen com rigor de ave
que outra vida para além da vida desenho do corpo
(turva claridade a dos seios pelas mãos de pétala
brilho o do teu frémito feroz de rocha e lava
rigor o do tempo entregue às águas da noite
o teu nome é o poema interrompido na implacável cinza
das noites percorridas em lençóis de água)
que nome é o teu afinal que nome é o teu de mulher rara
que nome é o teu condição violenta das pedras da memória
espaço íntimo de ínfimo
espaço de pétalas e lírios e claras águas
o teu espaço é a carne concentrada em fogo
ó suspensa criação da nulidade inútil
teu som brutal íntimo das ondas
espaço aberto ao espaço sideral do corpo
suspensa diluição da flama em nada
lenta habitação da célula nocturnal diurna
espaço da cidade onde jamais te encontras
pétala da língua no fazer do tempo
mais total que a totalidade total do íntimo
mais total que a totalidade total de um corpo
mais total que a totalidade total do ínfimo
ó palavra inacessível criadora de tudo
há o teu reflexo a fazer de espelho sombra no limite
pesar a sílaba na balança e os teus olhos com elas
a rápida e intacta forma trabalhada da madeira
tempo sobre tempo e sobre o tempo ainda
há o teu reflexo apenas olha águia que é o sol
não sei mas há o teu limite um quadrado
que se vai despenhando até ao centro da sombra
até à deslocação da formatura que adormece
há o despertar constante e continuado de uma pétala
o teu ombro de crisálida num poema
há o teu reflexo com uma fecundada madrugada
um nível de verde sombra a que chamamos mundo
o olhar despenha-se é certo mas recupera o gosto
de desenhar uma espada com a direcção do corpo
é a um animal esplêndido que irrompe
é a imortalidade numa coluna de diónisos
é o vinho vindo só da tua boca
é esse gesto de nocturna consumação do dia
é um pirilampo de água tresmalhado da sua emanação
é um olhar vertiginoso numa sábia ignorância
é a invenção consanguínea à palavra terrestre
é um dilúvio precipitado no corpo
é um lento desfiar de cavalos jovens em praias eternas
é um sinal dado por ti numa manhã de inverno
é o fim da cerração e da treva é um existir de penumbra
é o cessar das cinzas e o fim de todas as espadas
é o regresso ao luminoso subterrâneo és tu
tu na tua certeza incerta de saber um não sei quê que vem não
[sei onde
António Carlos Cortez, in “A Sombra no Limite”, editora Gótica, Maio de 2004.
ESTEVA DE ALBA
Imagine-se uma sala desenhada a céu
aberto um espaço esférico assente em
raízes de carvalho antigo e adornado
pelos limites de um céu a invocar o
anoitecer
Imagine-se o bulício do ar tornado
partículas de luz insuflado pela
penumbra crescente
Imagine-se um profundo silêncio
convocando uma assembleia de astros
peregrinos
Imagine-se o silêncio valsando com a
solidão ao som de uma dança antiga
para celebrar um itinerário sem memória
Imagine-se um conjunto de cadeiras
solidárias dispostas em círculo a observar
o movimento
atentas ao equilíbrio das órbitas
Imagine-se então sob o signo da luz a
fala de cada cadeira e só essa
iluminada de som
EU
Eu de mim
Trazida
na voz que espalha o vento
enfrento-me
Do desfiladeiro do Tempo
arca sagrada das ânsias perdidas
recolho na palma da mão
retenho na raiz do momento
a anunciada memória
de uma virtuosa miragem
Vapores de mim
suspensos na viagem
errante do pensamento
revelam-se imagens
de entes do antes
que não conheço
TU
E tu - quem és
que só existes
nos fios suspensos de mim?
Contornos dúbios
de uma outra forma de ser
pressinto que estejas aí
a ocupar outra cadeira
da minha vida
ELE
No embalo das noites
claras já tão distantes da vigília escura
crescem os dias serenos
ampliando horizontes
e acolhendo novas companhias
na varanda do ser
Porquê um outro?
Ele nada é!
Não o deixemos quebrar
nosso cúmplice aprumo
a exigir outro arrumo
segredamos
NÓS
Nós
das mil formas
Nós
de todas as cordas
Quimeras de vitórias
fomos povo fomos gente
urro brado
grito inconsciente
Nuvens de pós
lançados ao acaso ou
fruto d´uma promessa urgente?
VÓS
Vós
voz frígida da autoridade
no comando e no confronto
entre irmãos desleais
ELES
Deles
eu sei
dos outros
Todos os outros
desalinhos do igual
enredos da não pertença
Eles
o restolho da diferença
para as sobras do nós
VOZES
TODAS
Tempo
dardo lançado
abrindo a direcção
dos possíveis
no itinerário dos deuses
e no coração dos homens
Divididos e multiplicados
por um todos fomos
sendo em todos
nenhum
revelou-me o espelho
O foco de luz apagara-se
As cadeiras vazias descansam
da enorme pressão do som e da luz
Atentas escutam a espiral do silêncio
que recolhe vagarosa os vestígios
da virgem memória
Arrumadas em outra arquitectura de
sentires estão agora mais próximas
quase unidas de braços para acolher
novo fio de luz herança do primeiro
já recolhido
E se a umas quantas cadeiras é
imperceptível o prenúncio desta nova
luz – por excesso de polimento ou de
rugosidades no verniz – outras
cansadas de estar sentadas
abandonam-se às mãos
guiantes e fraternas ávidas por receber
o pólen de ouro que as conduzirá
por entre as esquinas das
sombras
Assim que se retirarem da sala.
esteva de alba, in “Eu de mim e outras vozes”, Pé de Página Editores, Junho de 2003.
LANÇAMENTO DO LIVRO "SE UM VIAJANTE NUMA ESPANHA DE LORCA" DE ANTONIO NAUD JÚNIOR
Antonio Júnior
À Viagem
Cigano incorrigível por vocação luminosa ou oculto Fado, António Júnior realiza a vida nômade com que todos sonhamos, imersos em nossas vigílias sedentárias. É por nós, generosamente, que ele cruza oceanos, contempla as paisagens, sem hesitar penetra em labirintos, ausculta cavernas, desvela horizontes, revela territórios reais e poéticos, se expõe face a face com geografias desconhecidas e interroga o humano em Diálogos reveladores, sempre, por onde passa. Capturadas em vivências que ele transforma em palavras, preservando, nessa alquimia, a mais pura autenticidade, suas Peregrinações nos enriquecem de sabores e sabores novos. À maneira de Xavier de Maistre em sua “Viagem em Torno do meu Quarto”. Sim? Mas um Xavier de Maistre invertido, porque o quarto de António Júnior é o mundo. Como ele outro e lendário cigano: Marco Pólo, é à Viagem que eles convidam. E não apenas à exterior, mas também a nós mesmos. Aceitemos o convite.
por Vicente Franz Cecim, Andara, 03 de Maio 2005.
Um sorriso de Gato para um viajante na Espanha de Lorca
Fada sorriu para mim o seu maravilhoso sorriso de criança, que não é sorriso arquivado em memória de actriz, porque Fada, mulher feita e formosa por fora, é criança por dentro, e isso eu soube logo em nosso primeiro encontro, que despertou em mim uma tremenda vontade de brincar, de mergulhar com frescura de asas numa brincadeira sem limites, até sentir aquela febre infantil, aquele delírio de querer evangelizar o mundo adulto, frio, mecânico absurdo e cínico, com nossa fé na Imaginação, nosso credo infantil e pagão na bondade natural e última do universo criado.
Ana sorriu para mim aquele seu espantoso sorriso de inocência, que é um sorriso que lhe sai do olhar e que fica pairando como um livro de contos, com florestas e duendes, numa promessa de aventura sem fim, de sonho, de utopia como nos contos fantásticos de minha infância. Ana, porém, é mulher acabada na máxima perfeição, design biológico do mais belo traço, adulta em carne e espírito. Mas que Ana é criança por dentro também eu soube desde nosso primeiro encontro selenográfico sob o arvoredo protector da Regaleira.
Fátima sorriu para mim seu grande, vasto, imenso sorriso protector, sorriso da irmã que tem juízo, aquela irmã que desculpa todas as nossas tontearias infantis, que reúne os cacos partidos por nossos excessos e os apresenta depois como objecto novo, inesperado, anunciador da boa nova. Fátima vai escrevendo um diário deste mundo traquinas que é o nosso, um diário que guarda num recanto de seu coração, que não nos mostra para que sua seriedade e gravidade não perturbem esta nossa descuidada infância. Pois Fátima, mulher-mãe, mulher-guardiã, mulher-anjo protector também é criança por dentro, e isso eu vi desde o primeiro sorriso que ela me ofereceu.
Teresa sorriu para mim aquele seu subtil sorriso de princesa, que concede um halo de mistério à sua pessoa, e nos deixa acreditando que ela terá as chaves de entrada para todos os palácios ocultos no interior da montanha, lugares de sonho com tesouros, livros fantásticos, gnomos e fadas, onde toda a criança adora brincar porque aí só regem as leis da bondade, da generosidade e da entreajuda para todos os seres. E esse seu sorriso me convenceu de que ela é igualmente uma criança por dentro, apesar de por fora ela ser mulher que a natureza concluiu com esmerada perfeição. E isso eu li em seu sorriso desde nosso primeiro encontro.
Rui sorriu para mim aquele seu sorriso de pirata bonzinho, de quem está na aventura da vida somente para descobrir o tesouro do Ser, desafiando-nos a atravessar o oceano encapelado e brumoso do conhecimento, como quem brinca com um barquinho no pequeno regato que passa junto da casa com que todos sonhamos. Ora, logo que conheci Rui e ele sorriu para mim, eu soube que ele também era criança por dentro, como eu afinal.
E que fiz eu com os sorrisos de Fada, Ana, Fátima, Teresa e Rui? Peguei neles, juntei-lhes o meu sorriso, e fui dar o sorriso daí resultante a António. Porquê? Porque foi ele quem, no fundo, com seu livro à boca de cena (“Se um Viajante numa Espanha de Lorca”, Ed. Pé da Página, Coimbra, 2005), nesse palco trágico e místico que leva de nome Espanha, nos fez a todos sorrir de novo como crianças. Se um Viajante numa Espanha de Lorca é uma narrativa para aqueles adultos que nunca deixaram esquecida no fundo das escadas de si, a criança que um dia foram. Nosso sorriso só quer dizer que entendemos bem o que é ser-atirado-no-mundo com a integral inocência do poeta-criança, para descrever esse país de arrepiar, de assombrosa e excêntrica história de nosso irmão ibérico. Como crianças crescidas nós sabemos que «a substância de um olhar é um trabalho de longo aprendizado, porque leva tempo descobrir em que sentido estamos “dentro” do que vemos.» (idem, pag.85). Com toda a cumplicidade de um poeta-criança, aqui deixo para você, António, meu sorriso igual àquele do Gato de Carrol, o Cheshire, que fica só pairando no ar, sem rosto.
George Till, Aguda, 2 de Junho de 2005.
dentro das conspirações da alma, nas
montanhas
da lua,
vive uma dama prateada,
desnuda,
olhos permanentemente abertos; ao redor,
um véu azulado, montanhas
de silêncio
com docilidade
ela acaricia luas e vaga-lumes e árvores,
sem tocá-los
e também acaricia, leitor invisível,
soprando versos nunca escritos, exalando um
cheiro de mandrágoras,
hortelãs na axilas
às vezes, nada é realmente real
ou tudo é real-terráqueo
e sonho e intensidade e vida
conectam-se, e a dama prateada sorri.
António Júnior, in “Se um Viajante numa Espanha de Lorca”, Pé de Página Editores, Maio de 2005.
LANÇAMENTO DO LIVRO "SEMPRE TIVE UM VINHO MUITO CIUMENTO" DE FERNANDO GRADE
Destacados pelo império para o solaparmos por dentro das suas fronteiras – ninguém sabia muito bem a origem deste missionarismo destruidor – encontrámo-nos nas ruas ardentes de Luanda, nos cafés onde se escreviam revelações apocalípticas nas portas dos lavabos, e os denunciantes não tinham mãos a medir entre os jovens estudantes, os doidos, os poetas, as mulheres que nunca foram virgens, os agentes de outros impérios, os passadores de liamba, os teólogos em ruptura, os travestis, os masoquistas, outros poetas que falavam da loucura dos mortos, pintores bêbedos e morfinómanos, belas mulheres, também outras, que chegavam de barco e avião para oferecerem seus corpos aos desertores nas praias, enlevos arrebatados ao pôr-do-sol do império.
Era preciso que o Fernando Grade chegasse, porque havia um vazio antes dele, o vazio das palavras cósmicas, do ritmo planetário em que se desenhava o futuro dos impérios que tinham de soçobrar, de desaparecerem do mapa político, para que o Big Brother estendesse as suas garras até aos intestinos de uma Europa viúva, de uma África exausta, de uma Ásia adormecida, de uma América do Sul depauperada. Ele fazia falta com suas provocadoras conferências sobre arte contemporânea, seus poemas surrealizantes, seu inconformismo genético para colocar o problema da Revolução, que sorvíamos nos textos de Marx, de Guevara, de Bakunine, de Vaneigem, no plano da transformação mental e da clarificação dos costumes. Até na sua idiossincrasia ele fazia falta, com seu bengali, seu casaco de linho azul, sua boina preta e seu cabelo sempre mais comprido do que os regulamentos militares permitiam.
Depois do Grade, o poeta David Mestre nunca mais foi o mesmo e crismado ficou de Xoné, o poeta João Serra nunca mais foi o mesmo, para além de ter passado a ser o João Maluco, eu próprio nunca mais fui o mesmo e passei a ser o “Jójó”, e quando partíamos à boleia para os planaltos ou o deserto com a “beat generation” na mochila, os olhos cheios de flores de San Francisco e libertarianismo de Amsterdam, passámos a levar também a antologia do «Desintegracionismo», desse último ismo da literatura portuguesa, movimento fundado por ele e outros poetas como o Armando Ventura Ferreira ou o Hugo Beja, para jantarmos os corpos amazónicos das Cuanhamas no gelo que o Grade trazia da Gronelândia (V. Poema de Fernando Grade «Uma Rapariga na Gronelândia ou Jantarei o teu Corpo sobre o Gelo», in «Desintegracionismo», Lisboa, 1965), incendiando a sintaxe do catecúmeno Português liceal para obter novas formulações sobre o ocaso de um império perante nós a desintegrar-se. Democracia, sim, mas onde ficaria o amor, revolução, sim, mas onde ficaria o pacifismo de um Cristo social? Perante a boca dos fuzis nós representávamos, com a vida na ponta das mãos, a angústia dos palhaços.
Num império em declínio toda a gente está de passagem, os próprios colonizados estão de passagem para serem cidadãos do seu país, todos lançam sementes para o ser que encontrarão no espelho quando o dia zero chegar. Por isso também o Grade partiu um dia, deixou o quarto da pensão na Maianga, as amantes fáceis e as mais difíceis, quadros da série «Teoria das Multidões» no Museu de Angola, a fulminância do gosto intervencionista, saudades, exposições, conferências, poemas, as sementes de que precisávamos para o dia zero. Deixou um exemplo de coerência e desassombro para combatermos até ao crespúsculo no nosso posto de poetas incontroláveis.
Nesse teatro trágico, sanguinário, em que vida e morte combatem no teu próprio corpo, em tua própria mente, nessa macabra encenação que o império escolheu para o seu destroçamento, a nossa trincheira chamava-se poesia. Depois de o Grade partir, o David Mestre Xoné, o Jorge Ribeiro e o Jójó, criaram o grupo Poesia-Hoje, para lerem poemas do Agostinho Neto, do Viriato da Cruz, do António Jacinto olhando nos olhos os inspectores da pide presentes nos recitais. Descobri os musseques e a sua imensa vida espiritual, era lá que eu aprendia a tocar piano com meu professor africano, era lá que eu ia às missas evangélicas para ouvir os gospels, era lá que eu amava. De madrugada, o Xoné e eu sentávamo-nos nas esplanadas dos cafés fechados na baía de Luanda, e na noite húmida e inchada de violência contida, líamos, escrevíamos, conversávamos do futuro nas entrelinhas. Tudo acabou mal, muito mal, da pior maneira possível. A pide matou. Um soldado podia ser poeta, mas a poesia não devia agitar o sono hipócrita da ordem moribunda.
O novo era mais forte do que o velho, foi por isso que andámos juntos nas ruas de Lisboa no 25 de Abril de 1974, não precisávamos de nos ver, andávamos lado a lado, éramos todos um único querer durante momentos que pareciam nunca acabar. O novo enterrou o velho, o velho enterrou o novo, e vimo-nos então no Chiado, no Verão Quente de 1975, enquanto os ingleses desciam a Rua Nova da Trindade, com seus sorrisos sardónicos, lendo em voz alta dos cartazes que cobriam todas as paredes, num coro que nunca parava: Pi Ci Pi! Pi Ci Pi! Pi Ci Pi!. Dei-te um poema novo nessa ocasião, não sei o que lhe fizeste, mas disseste-me na altura com toda a tua franqueza que eu não percebia nada da tua «Teoria das Multidões». Talvez na altura não percebesse, mas com a evolução que as coisas tiveram no nosso país e no mundo, garanto-te hoje que a única teoria das multidões que eu percebo é a tua.
Que não se ofendam os presentes por eu estar a escrever para o futuro, mas para além do calor que a poesia do Fernando Grade continuará a irradiar, calor do sonho, da rebeldia, da utopia, é essencial que se saiba que ele é um exemplo alto do que é um escritor empenhado, como um actor na boca da história, empenhado na escrita, mas primordialmente empenhado no homem, no social, nas questões fundamentais para todos nós. O que distingue o seu empenhamento é a sua vertebração poética. Falo de uma unidade nele manifesta entre o ser social e o ser poeta: coincidência plena. Bem pode a comunidade regozijar-se por existirem tais seres como ele, embora igual eu não conheça, para que ela se reveja no seu inconformismo como um sinal de esperança, daquela profunda esperança que todos temos no desocultamento do ser que tudo clarificará. Enquanto vivermos temos a responsabilidade de colocar questões fundamentais ao Fernando Grade.
Jorge Telles de Menezes
TRAGAM MAIS VINHO PARA OS ROMÂNTICOS
A maior morte que aconteceu na minha infância
foi Billy the Kid.
Por esse tempo há muito tempo passaram
frutos e pedras e, então, havia aves a descerem
para o mar, havia névoas da cor das uvas
moscatéis e, talvez, a salsugem
e as sestas saboreadas dormidas em cima da caruma
nos Capuchos; era uma altura
em que o teu corpo ainda não me ameaçara
com o mar dos feitiços.
Volto atrás e sou meninos
tenho uma madrinha que era fanática
pela praia da Adraga:
os méis ainda estavam todos vivos,
não havia um verme lustroso
a roer a maçã,
foi numa noite de Verão com vento
que apareceu morto Billy the Kid
apunhalado na minha caixa dos brinquedos.
Agora quando vou aos Capuchos são outros os meus fantasmas:
o teu corpo está à beira do tempo:
os segredos que nos uniram
a mim e à parte fumegante que de ti resta
são como trapos sangrentos;
olho para o retrato da tua boca
como se fosses feita de
Lama,
nuvens que nunca vi.
Mas gostava da maneira como tratavas as plantas:
as plantas são crianças indefesas
que sentem as catástrofes
lambem a neve das estradas.
Vivi uma destas tardes a praia toda
o mar fulo, rebolei-me na areia velha onde cresci alguns verões,
lá estavam os mirones, porventura os filhos dos outros mirones,
o coxo sábio e o maneta,
tudo a cheirar a chuva e a muito sal,
as casas grandes eram sempre neuróticas
ter uma casa enorme aberta às brisas
era como sustentar uma rapariga neurótica.
Bem, havia sombras afugentadas por olhos de
pedra, lábios submersos por maçãs
vinhedos, o sabor bruxo dos pêssegos
a resina a escorrer para o rio de Colares
A praia da Adraga
foi o vinho mais feliz da minha vida.
POR QUE NÃO CHOVEM AQUI AS TUAS LÁGRIMAS?
O lobo das trevas posso ser eu.
Olha bem os dentes de saibro que deixei crescer por dentro da alma.
Repara que as tardes caem, chega o vento atiçado de mar,
gordos peixes, a salsugem
tem o peso sórdido dos navios com sereia,
todos os objectos de som e larva vão começar
a ter ferrugem digna de quem não sabe a cor da pressa.
Acorda, pressa mansa, acorda: os objectos tornam-se
seres, respiram por brânquias, poros de seda,
talvez pulmões onde o aço do sangue corre até ser dia
de um novo sangue.
A minha vida desce no vácuo, destruí com as próprias mãos
as roseiras. Alguém de azul e noite pegou nos cristais
como se fossem dedos de capador: as angústias arderão
qual carne rose de rena, porco de muitos.
Um longo bafo vertical cava nos ossos o sítio esconso
onde o fogo reina, e na crosta onde o fogo é pantera e rei
passa um rio: sempre o retrato fugitivo da minha vida
em serpente de astros, palha de vassoura e obus,
sempre as românticas trevas e os beijos do lobo
e rente aos canaviais o meu inóspito coração de vagabundo.
Fulminadas as portas de sebo com as chaves dentro,
os dentes mágicos do lobo vivem, rasgam a sintaxe e
os olhos de cisne, misturam o deserto sem motores ou lâmpadas
no gosto por placentas e raízes.
O verde zero que foi pedra há-de afastar-se de mim
na velhice; quero ser um velho súbito, varão de roupas
em chamas, colete de terra.
Estão preparados os andaimes para que o clítoris
possa ser fogo cru e vir chamar-se coração.
Assim como o lobo das trevas posso à mesma ser eu,
chão d´uvas, rostos minados, pedras, e o sangue
novo canta sempre:
- POR QUE NÃO CHOVEM AQUI AS TUAS LÁGRIMAS?
AULA DE FILOSOFIA
Eu sei:
em Sócrates,
que foi o fantasma rústico de Platão,
tu sempre foste burro.
Ou burra
(com ou sem asas),
minha cálida e sórdida gorda.
Águas carnais nos olhos de Moira e de Lorna,
o salitre roído por larvas aos pés de Jurgen.
Os meus alunos serão gagos da alma?,
ou sou eu – anticasto – gago de mim mesmo?
Vejo-te deitada na cama com Spinoza.
Descobri que vivias satisfeito e latino
nos braços vulcânicos de Heraclito.
Sentei-me em cima do sangue do toiro morto
e em todos os beijos há uma fenda de água.
Sei
de conversas fúteis que não sabem a morango.
Fernando Grade, in “SEMPRE TIVE UM VINHO MUITO CIUMENTO”, Edições Mic, Maio de 2005