Fernando Grade um Poeta à boca da História
Destacados pelo império para o solaparmos por dentro das suas fronteiras – ninguém sabia muito bem a origem deste missionarismo destruidor – encontrámo-nos nas ruas ardentes de Luanda, nos cafés onde se escreviam revelações apocalípticas nas portas dos lavabos, e os denunciantes não tinham mãos a medir entre os jovens estudantes, os doidos, os poetas, as mulheres que nunca foram virgens, os agentes de outros impérios, os passadores de liamba, os teólogos em ruptura, os travestis, os masoquistas, outros poetas que falavam da loucura dos mortos, pintores bêbedos e morfinómanos, belas mulheres, também outras, que chegavam de barco e avião para oferecerem seus corpos aos desertores nas praias, enlevos arrebatados ao pôr-do-sol do império.
Era preciso que o Fernando Grade chegasse, porque havia um vazio antes dele, o vazio das palavras cósmicas, do ritmo planetário em que se desenhava o futuro dos impérios que tinham de soçobrar, de desaparecerem do mapa político, para que o Big Brother estendesse as suas garras até aos intestinos de uma Europa viúva, de uma África exausta, de uma Ásia adormecida, de uma América do Sul depauperada. Ele fazia falta com suas provocadoras conferências sobre arte contemporânea, seus poemas surrealizantes, seu inconformismo genético para colocar o problema da Revolução, que sorvíamos nos textos de Marx, de Guevara, de Bakunine, de Vaneigem, no plano da transformação mental e da clarificação dos costumes. Até na sua idiossincrasia ele fazia falta, com seu bengali, seu casaco de linho azul, sua boina preta e seu cabelo sempre mais comprido do que os regulamentos militares permitiam.
Depois do Grade, o poeta David Mestre nunca mais foi o mesmo e crismado ficou de Xoné, o poeta João Serra nunca mais foi o mesmo, para além de ter passado a ser o João Maluco, eu próprio nunca mais fui o mesmo e passei a ser o “Jójó”, e quando partíamos à boleia para os planaltos ou o deserto com a “beat generation” na mochila, os olhos cheios de flores de San Francisco e libertarianismo de Amsterdam, passámos a levar também a antologia do «Desintegracionismo», desse último ismo da literatura portuguesa, movimento fundado por ele e outros poetas como o Armando Ventura Ferreira ou o Hugo Beja, para jantarmos os corpos amazónicos das Cuanhamas no gelo que o Grade trazia da Gronelândia (V. Poema de Fernando Grade «Uma Rapariga na Gronelândia ou Jantarei o teu Corpo sobre o Gelo», in «Desintegracionismo», Lisboa, 1965), incendiando a sintaxe do catecúmeno Português liceal para obter novas formulações sobre o ocaso de um império perante nós a desintegrar-se. Democracia, sim, mas onde ficaria o amor, revolução, sim, mas onde ficaria o pacifismo de um Cristo social? Perante a boca dos fuzis nós representávamos, com a vida na ponta das mãos, a angústia dos palhaços.
Num império em declínio toda a gente está de passagem, os próprios colonizados estão de passagem para serem cidadãos do seu país, todos lançam sementes para o ser que encontrarão no espelho quando o dia zero chegar. Por isso também o Grade partiu um dia, deixou o quarto da pensão na Maianga, as amantes fáceis e as mais difíceis, quadros da série «Teoria das Multidões» no Museu de Angola, a fulminância do gosto intervencionista, saudades, exposições, conferências, poemas, as sementes de que precisávamos para o dia zero. Deixou um exemplo de coerência e desassombro para combatermos até ao crespúsculo no nosso posto de poetas incontroláveis.
Nesse teatro trágico, sanguinário, em que vida e morte combatem no teu próprio corpo, em tua própria mente, nessa macabra encenação que o império escolheu para o seu destroçamento, a nossa trincheira chamava-se poesia. Depois de o Grade partir, o David Mestre Xoné, o Jorge Ribeiro e o Jójó, criaram o grupo Poesia-Hoje, para lerem poemas do Agostinho Neto, do Viriato da Cruz, do António Jacinto olhando nos olhos os inspectores da pide presentes nos recitais. Descobri os musseques e a sua imensa vida espiritual, era lá que eu aprendia a tocar piano com meu professor africano, era lá que eu ia às missas evangélicas para ouvir os gospels, era lá que eu amava. De madrugada, o Xoné e eu sentávamo-nos nas esplanadas dos cafés fechados na baía de Luanda, e na noite húmida e inchada de violência contida, líamos, escrevíamos, conversávamos do futuro nas entrelinhas. Tudo acabou mal, muito mal, da pior maneira possível. A pide matou. Um soldado podia ser poeta, mas a poesia não devia agitar o sono hipócrita da ordem moribunda.
O novo era mais forte do que o velho, foi por isso que andámos juntos nas ruas de Lisboa no 25 de Abril de 1974, não precisávamos de nos ver, andávamos lado a lado, éramos todos um único querer durante momentos que pareciam nunca acabar. O novo enterrou o velho, o velho enterrou o novo, e vimo-nos então no Chiado, no Verão Quente de 1975, enquanto os ingleses desciam a Rua Nova da Trindade, com seus sorrisos sardónicos, lendo em voz alta dos cartazes que cobriam todas as paredes, num coro que nunca parava: Pi Ci Pi! Pi Ci Pi! Pi Ci Pi!. Dei-te um poema novo nessa ocasião, não sei o que lhe fizeste, mas disseste-me na altura com toda a tua franqueza que eu não percebia nada da tua «Teoria das Multidões». Talvez na altura não percebesse, mas com a evolução que as coisas tiveram no nosso país e no mundo, garanto-te hoje que a única teoria das multidões que eu percebo é a tua.
Que não se ofendam os presentes por eu estar a escrever para o futuro, mas para além do calor que a poesia do Fernando Grade continuará a irradiar, calor do sonho, da rebeldia, da utopia, é essencial que se saiba que ele é um exemplo alto do que é um escritor empenhado, como um actor na boca da história, empenhado na escrita, mas primordialmente empenhado no homem, no social, nas questões fundamentais para todos nós. O que distingue o seu empenhamento é a sua vertebração poética. Falo de uma unidade nele manifesta entre o ser social e o ser poeta: coincidência plena. Bem pode a comunidade regozijar-se por existirem tais seres como ele, embora igual eu não conheça, para que ela se reveja no seu inconformismo como um sinal de esperança, daquela profunda esperança que todos temos no desocultamento do ser que tudo clarificará. Enquanto vivermos temos a responsabilidade de colocar questões fundamentais ao Fernando Grade.
Jorge Telles de Menezes
TRAGAM MAIS VINHO PARA OS ROMÂNTICOS
A maior morte que aconteceu na minha infância
foi Billy the Kid.
Por esse tempo há muito tempo passaram
frutos e pedras e, então, havia aves a descerem
para o mar, havia névoas da cor das uvas
moscatéis e, talvez, a salsugem
e as sestas saboreadas dormidas em cima da caruma
nos Capuchos; era uma altura
em que o teu corpo ainda não me ameaçara
com o mar dos feitiços.
Volto atrás e sou meninos
tenho uma madrinha que era fanática
pela praia da Adraga:
os méis ainda estavam todos vivos,
não havia um verme lustroso
a roer a maçã,
foi numa noite de Verão com vento
que apareceu morto Billy the Kid
apunhalado na minha caixa dos brinquedos.
Agora quando vou aos Capuchos são outros os meus fantasmas:
o teu corpo está à beira do tempo:
os segredos que nos uniram
a mim e à parte fumegante que de ti resta
são como trapos sangrentos;
olho para o retrato da tua boca
como se fosses feita de
Lama,
nuvens que nunca vi.
Mas gostava da maneira como tratavas as plantas:
as plantas são crianças indefesas
que sentem as catástrofes
lambem a neve das estradas.
Vivi uma destas tardes a praia toda
o mar fulo, rebolei-me na areia velha onde cresci alguns verões,
lá estavam os mirones, porventura os filhos dos outros mirones,
o coxo sábio e o maneta,
tudo a cheirar a chuva e a muito sal,
as casas grandes eram sempre neuróticas
ter uma casa enorme aberta às brisas
era como sustentar uma rapariga neurótica.
Bem, havia sombras afugentadas por olhos de
pedra, lábios submersos por maçãs
vinhedos, o sabor bruxo dos pêssegos
a resina a escorrer para o rio de Colares
A praia da Adraga
foi o vinho mais feliz da minha vida.
POR QUE NÃO CHOVEM AQUI AS TUAS LÁGRIMAS?
O lobo das trevas posso ser eu.
Olha bem os dentes de saibro que deixei crescer por dentro da alma.
Repara que as tardes caem, chega o vento atiçado de mar,
gordos peixes, a salsugem
tem o peso sórdido dos navios com sereia,
todos os objectos de som e larva vão começar
a ter ferrugem digna de quem não sabe a cor da pressa.
Acorda, pressa mansa, acorda: os objectos tornam-se
seres, respiram por brânquias, poros de seda,
talvez pulmões onde o aço do sangue corre até ser dia
de um novo sangue.
A minha vida desce no vácuo, destruí com as próprias mãos
as roseiras. Alguém de azul e noite pegou nos cristais
como se fossem dedos de capador: as angústias arderão
qual carne rose de rena, porco de muitos.
Um longo bafo vertical cava nos ossos o sítio esconso
onde o fogo reina, e na crosta onde o fogo é pantera e rei
passa um rio: sempre o retrato fugitivo da minha vida
em serpente de astros, palha de vassoura e obus,
sempre as românticas trevas e os beijos do lobo
e rente aos canaviais o meu inóspito coração de vagabundo.
Fulminadas as portas de sebo com as chaves dentro,
os dentes mágicos do lobo vivem, rasgam a sintaxe e
os olhos de cisne, misturam o deserto sem motores ou lâmpadas
no gosto por placentas e raízes.
O verde zero que foi pedra há-de afastar-se de mim
na velhice; quero ser um velho súbito, varão de roupas
em chamas, colete de terra.
Estão preparados os andaimes para que o clítoris
possa ser fogo cru e vir chamar-se coração.
Assim como o lobo das trevas posso à mesma ser eu,
chão d´uvas, rostos minados, pedras, e o sangue
novo canta sempre:
- POR QUE NÃO CHOVEM AQUI AS TUAS LÁGRIMAS?
AULA DE FILOSOFIA
Eu sei:
em Sócrates,
que foi o fantasma rústico de Platão,
tu sempre foste burro.
Ou burra
(com ou sem asas),
minha cálida e sórdida gorda.
Águas carnais nos olhos de Moira e de Lorna,
o salitre roído por larvas aos pés de Jurgen.
Os meus alunos serão gagos da alma?,
ou sou eu – anticasto – gago de mim mesmo?
Vejo-te deitada na cama com Spinoza.
Descobri que vivias satisfeito e latino
nos braços vulcânicos de Heraclito.
Sentei-me em cima do sangue do toiro morto
e em todos os beijos há uma fenda de água.
Sei
de conversas fúteis que não sabem a morango.
Fernando Grade, in “SEMPRE TIVE UM VINHO MUITO CIUMENTO”, Edições Mic, Maio de 2005
Destacados pelo império para o solaparmos por dentro das suas fronteiras – ninguém sabia muito bem a origem deste missionarismo destruidor – encontrámo-nos nas ruas ardentes de Luanda, nos cafés onde se escreviam revelações apocalípticas nas portas dos lavabos, e os denunciantes não tinham mãos a medir entre os jovens estudantes, os doidos, os poetas, as mulheres que nunca foram virgens, os agentes de outros impérios, os passadores de liamba, os teólogos em ruptura, os travestis, os masoquistas, outros poetas que falavam da loucura dos mortos, pintores bêbedos e morfinómanos, belas mulheres, também outras, que chegavam de barco e avião para oferecerem seus corpos aos desertores nas praias, enlevos arrebatados ao pôr-do-sol do império.
Era preciso que o Fernando Grade chegasse, porque havia um vazio antes dele, o vazio das palavras cósmicas, do ritmo planetário em que se desenhava o futuro dos impérios que tinham de soçobrar, de desaparecerem do mapa político, para que o Big Brother estendesse as suas garras até aos intestinos de uma Europa viúva, de uma África exausta, de uma Ásia adormecida, de uma América do Sul depauperada. Ele fazia falta com suas provocadoras conferências sobre arte contemporânea, seus poemas surrealizantes, seu inconformismo genético para colocar o problema da Revolução, que sorvíamos nos textos de Marx, de Guevara, de Bakunine, de Vaneigem, no plano da transformação mental e da clarificação dos costumes. Até na sua idiossincrasia ele fazia falta, com seu bengali, seu casaco de linho azul, sua boina preta e seu cabelo sempre mais comprido do que os regulamentos militares permitiam.
Depois do Grade, o poeta David Mestre nunca mais foi o mesmo e crismado ficou de Xoné, o poeta João Serra nunca mais foi o mesmo, para além de ter passado a ser o João Maluco, eu próprio nunca mais fui o mesmo e passei a ser o “Jójó”, e quando partíamos à boleia para os planaltos ou o deserto com a “beat generation” na mochila, os olhos cheios de flores de San Francisco e libertarianismo de Amsterdam, passámos a levar também a antologia do «Desintegracionismo», desse último ismo da literatura portuguesa, movimento fundado por ele e outros poetas como o Armando Ventura Ferreira ou o Hugo Beja, para jantarmos os corpos amazónicos das Cuanhamas no gelo que o Grade trazia da Gronelândia (V. Poema de Fernando Grade «Uma Rapariga na Gronelândia ou Jantarei o teu Corpo sobre o Gelo», in «Desintegracionismo», Lisboa, 1965), incendiando a sintaxe do catecúmeno Português liceal para obter novas formulações sobre o ocaso de um império perante nós a desintegrar-se. Democracia, sim, mas onde ficaria o amor, revolução, sim, mas onde ficaria o pacifismo de um Cristo social? Perante a boca dos fuzis nós representávamos, com a vida na ponta das mãos, a angústia dos palhaços.
Num império em declínio toda a gente está de passagem, os próprios colonizados estão de passagem para serem cidadãos do seu país, todos lançam sementes para o ser que encontrarão no espelho quando o dia zero chegar. Por isso também o Grade partiu um dia, deixou o quarto da pensão na Maianga, as amantes fáceis e as mais difíceis, quadros da série «Teoria das Multidões» no Museu de Angola, a fulminância do gosto intervencionista, saudades, exposições, conferências, poemas, as sementes de que precisávamos para o dia zero. Deixou um exemplo de coerência e desassombro para combatermos até ao crespúsculo no nosso posto de poetas incontroláveis.
Nesse teatro trágico, sanguinário, em que vida e morte combatem no teu próprio corpo, em tua própria mente, nessa macabra encenação que o império escolheu para o seu destroçamento, a nossa trincheira chamava-se poesia. Depois de o Grade partir, o David Mestre Xoné, o Jorge Ribeiro e o Jójó, criaram o grupo Poesia-Hoje, para lerem poemas do Agostinho Neto, do Viriato da Cruz, do António Jacinto olhando nos olhos os inspectores da pide presentes nos recitais. Descobri os musseques e a sua imensa vida espiritual, era lá que eu aprendia a tocar piano com meu professor africano, era lá que eu ia às missas evangélicas para ouvir os gospels, era lá que eu amava. De madrugada, o Xoné e eu sentávamo-nos nas esplanadas dos cafés fechados na baía de Luanda, e na noite húmida e inchada de violência contida, líamos, escrevíamos, conversávamos do futuro nas entrelinhas. Tudo acabou mal, muito mal, da pior maneira possível. A pide matou. Um soldado podia ser poeta, mas a poesia não devia agitar o sono hipócrita da ordem moribunda.
O novo era mais forte do que o velho, foi por isso que andámos juntos nas ruas de Lisboa no 25 de Abril de 1974, não precisávamos de nos ver, andávamos lado a lado, éramos todos um único querer durante momentos que pareciam nunca acabar. O novo enterrou o velho, o velho enterrou o novo, e vimo-nos então no Chiado, no Verão Quente de 1975, enquanto os ingleses desciam a Rua Nova da Trindade, com seus sorrisos sardónicos, lendo em voz alta dos cartazes que cobriam todas as paredes, num coro que nunca parava: Pi Ci Pi! Pi Ci Pi! Pi Ci Pi!. Dei-te um poema novo nessa ocasião, não sei o que lhe fizeste, mas disseste-me na altura com toda a tua franqueza que eu não percebia nada da tua «Teoria das Multidões». Talvez na altura não percebesse, mas com a evolução que as coisas tiveram no nosso país e no mundo, garanto-te hoje que a única teoria das multidões que eu percebo é a tua.
Que não se ofendam os presentes por eu estar a escrever para o futuro, mas para além do calor que a poesia do Fernando Grade continuará a irradiar, calor do sonho, da rebeldia, da utopia, é essencial que se saiba que ele é um exemplo alto do que é um escritor empenhado, como um actor na boca da história, empenhado na escrita, mas primordialmente empenhado no homem, no social, nas questões fundamentais para todos nós. O que distingue o seu empenhamento é a sua vertebração poética. Falo de uma unidade nele manifesta entre o ser social e o ser poeta: coincidência plena. Bem pode a comunidade regozijar-se por existirem tais seres como ele, embora igual eu não conheça, para que ela se reveja no seu inconformismo como um sinal de esperança, daquela profunda esperança que todos temos no desocultamento do ser que tudo clarificará. Enquanto vivermos temos a responsabilidade de colocar questões fundamentais ao Fernando Grade.
Jorge Telles de Menezes
TRAGAM MAIS VINHO PARA OS ROMÂNTICOS
A maior morte que aconteceu na minha infância
foi Billy the Kid.
Por esse tempo há muito tempo passaram
frutos e pedras e, então, havia aves a descerem
para o mar, havia névoas da cor das uvas
moscatéis e, talvez, a salsugem
e as sestas saboreadas dormidas em cima da caruma
nos Capuchos; era uma altura
em que o teu corpo ainda não me ameaçara
com o mar dos feitiços.
Volto atrás e sou meninos
tenho uma madrinha que era fanática
pela praia da Adraga:
os méis ainda estavam todos vivos,
não havia um verme lustroso
a roer a maçã,
foi numa noite de Verão com vento
que apareceu morto Billy the Kid
apunhalado na minha caixa dos brinquedos.
Agora quando vou aos Capuchos são outros os meus fantasmas:
o teu corpo está à beira do tempo:
os segredos que nos uniram
a mim e à parte fumegante que de ti resta
são como trapos sangrentos;
olho para o retrato da tua boca
como se fosses feita de
Lama,
nuvens que nunca vi.
Mas gostava da maneira como tratavas as plantas:
as plantas são crianças indefesas
que sentem as catástrofes
lambem a neve das estradas.
Vivi uma destas tardes a praia toda
o mar fulo, rebolei-me na areia velha onde cresci alguns verões,
lá estavam os mirones, porventura os filhos dos outros mirones,
o coxo sábio e o maneta,
tudo a cheirar a chuva e a muito sal,
as casas grandes eram sempre neuróticas
ter uma casa enorme aberta às brisas
era como sustentar uma rapariga neurótica.
Bem, havia sombras afugentadas por olhos de
pedra, lábios submersos por maçãs
vinhedos, o sabor bruxo dos pêssegos
a resina a escorrer para o rio de Colares
A praia da Adraga
foi o vinho mais feliz da minha vida.
POR QUE NÃO CHOVEM AQUI AS TUAS LÁGRIMAS?
O lobo das trevas posso ser eu.
Olha bem os dentes de saibro que deixei crescer por dentro da alma.
Repara que as tardes caem, chega o vento atiçado de mar,
gordos peixes, a salsugem
tem o peso sórdido dos navios com sereia,
todos os objectos de som e larva vão começar
a ter ferrugem digna de quem não sabe a cor da pressa.
Acorda, pressa mansa, acorda: os objectos tornam-se
seres, respiram por brânquias, poros de seda,
talvez pulmões onde o aço do sangue corre até ser dia
de um novo sangue.
A minha vida desce no vácuo, destruí com as próprias mãos
as roseiras. Alguém de azul e noite pegou nos cristais
como se fossem dedos de capador: as angústias arderão
qual carne rose de rena, porco de muitos.
Um longo bafo vertical cava nos ossos o sítio esconso
onde o fogo reina, e na crosta onde o fogo é pantera e rei
passa um rio: sempre o retrato fugitivo da minha vida
em serpente de astros, palha de vassoura e obus,
sempre as românticas trevas e os beijos do lobo
e rente aos canaviais o meu inóspito coração de vagabundo.
Fulminadas as portas de sebo com as chaves dentro,
os dentes mágicos do lobo vivem, rasgam a sintaxe e
os olhos de cisne, misturam o deserto sem motores ou lâmpadas
no gosto por placentas e raízes.
O verde zero que foi pedra há-de afastar-se de mim
na velhice; quero ser um velho súbito, varão de roupas
em chamas, colete de terra.
Estão preparados os andaimes para que o clítoris
possa ser fogo cru e vir chamar-se coração.
Assim como o lobo das trevas posso à mesma ser eu,
chão d´uvas, rostos minados, pedras, e o sangue
novo canta sempre:
- POR QUE NÃO CHOVEM AQUI AS TUAS LÁGRIMAS?
AULA DE FILOSOFIA
Eu sei:
em Sócrates,
que foi o fantasma rústico de Platão,
tu sempre foste burro.
Ou burra
(com ou sem asas),
minha cálida e sórdida gorda.
Águas carnais nos olhos de Moira e de Lorna,
o salitre roído por larvas aos pés de Jurgen.
Os meus alunos serão gagos da alma?,
ou sou eu – anticasto – gago de mim mesmo?
Vejo-te deitada na cama com Spinoza.
Descobri que vivias satisfeito e latino
nos braços vulcânicos de Heraclito.
Sentei-me em cima do sangue do toiro morto
e em todos os beijos há uma fenda de água.
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Fernando Grade, in “SEMPRE TIVE UM VINHO MUITO CIUMENTO”, Edições Mic, Maio de 2005
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