segunda-feira, janeiro 16, 2006

RECUPERAÇÃO DE TEXTOS LIDOS EM SESSÕES ANTIGAS:

PAUL ÉLUARD / MAX ERNST


MOLÉCULAS ESTRAGADAS

Os crocodilos de hoje já não são crocodilos. Onde ficaram os bons velhos aventureiros, que metiam nas narinas uma bicicleta minúscula e declives de gelo? Os corredores dos quatro pontos cardeais seguiam a rapidez com o dedo e faziam um cumprimento. Que divertido não era outrora, apoiar-se com uma corajosa despreocupação naqueles rios agradáveis polvilhados de pombas e pimenta.
Já não existem pássaros autênticos. As cordas que se esticavam, à noite, sobre os caminhos de regresso, não deixavam ninguém tropeçar, mas em qualquer falso obstáculo tarjavam-se os olhos dos artistas do equilíbrio com alguns sorrisos. O pó cheirava a raio. Antigamente, os bons velhos peixes usavam bonitos sapatos vermelhos nas barbatanas.
Já não existem mais autênticos ciclistas aquáticos, nenhuma microcospia e nenhuma bacteriologia, em verdade, os crocodilos já não são mais crocodilos.

Tradução de George Till, de uma antologia de surrealismo alemão intitulada «Gib Acht tritt nicht auf meine Träume»ed. por Berndt Schulz, Eichborn Verlag.



Ibn Hazm al Andalusi


O COLAR DA POMBA

Conteúdo

A essência do amor. Os sinais do amor. As pessoas que se apaixonam enquanto dormem. As pessoas que se apaixonam com base numa descrição. As pessoas que se apaixonam ao primeiro olhar. As pessoas que só se apaixonam pouco a pouco. As pessoas que se apaixonam por uma característica. O dar a entender por palavras. O fazer sinais com os olhos. A troca de correspondência. O mensageiro. O guardar o segredo de amor. O renunciar ao segredo de amor. A submissão. O comportamento desabrido. O censurador. O amigo solícito. O observador. O caluniador. A união. O esquivar-se. A fidelidade. A infidelidade. A separação. A sobriedade. A enfermidade. O esquecimento. A morte. A abominação do pecado. A excelência da castidade.



Farid ud-Din Attar (1120-1230)


A CONFERÊNCIA DOS PÁSSAROS

De repente abriu-se o portão e saiu de lá um nobre camareiro, um dos cortesãos da suprema Majestade. Ele examinou-os e viu que dos milhares que eram só estes trinta pássaros tinham sobrevivido. «Então, vós pássaros», disse ele, «de onde vindes, e o que fazeis aqui? Como vos chamais? Ó vós, que sois verdadeiramente todas as coisas, onde fica o vosso lar? Como sois chamados no mundo? O que se poderá fazer com vós que não sois mais do que uma frágil mão cheia de pó?»
«Nós viemos», retorquiram os pássaros», «para reconhecermos o Simurgh como nosso rei. Devido ao nosso amor e à nossa saudade por ele perdemos o entendimento e a nossa paz de espírito. Há muito tempo passado, quando nós partimos para a viagem, éramos milhares, e somente trinta e dois de nós chegaram a esta nobre corte. Nós não podemos acreditar que, depois de todo o nosso esforço e sofrimento o Rei nos irá repudiar. Oh não! Ele só nos pode acolher com benevolência!»...
Depois de o camareiro os ter posto assim à prova, abriu-lhes o portão. Um atrás do outro, ele descerrou centenas de cortinados e por trás do véu descobriu-se um mundo inteiramente novo. Agora revelava-se a luz das luzes, e eles sentaram-se todos no Masnad, o assento da majestade e do esplendor. Entregaram-lhes um escrito que eles deviam ler; e depois de o terem lido e nele terem reflectido, entenderam o seu estado. Depois de terem atingido uma paz completa e de se terem libertado de todas as coisas, reconheceram o Simurgh que estava entre eles, e à luz do Simurgh começou uma nova vida para eles.
Tudo o que eles tinham feito até então foi purificado. O sol da majestade irradiava os seus raios, e as suas almas luziam, e no reflexo dos seus rostos observavam estes trinta pássaros (Si-murgh) do mundo exterior o Simurgh do mundo interior, invisível. Isso deixou-os de tal modo espantados, que eles não sabiam mais se ainda eram eles próprios ou se se tinham tornado no Simurgh. Por fim, num estado de contemplação e ensimesmamento, eles reconheceram que eram o Simurgh e que o Simurgh era os trinta pássaros. Quando eles observavam o Simurgh, eles viam que tinham o Simurgh realmente diante de si; e quando dirigiam o olhar para si mesmos, reconheciam que eles eram o próprio Simurgh. E quando eles perceberam os dois ao mesmo tempo, eles próprios e Ele, tiveram consciência de que eles e o Simurgh formavam um e o mesmo ser. Nunca ninguém no mundo ouviu falar de um milagre que se equipare a este.

Textos traduzidos do alemão por George Till, de «Die Erfindung der Liebe», ed. por Claudia Schmölders, Verlag C. H. Beck, Munique.

3 comentários:

Anónimo disse...

Estou sempre por aqui. Fico contente com a energia lúdica dos Meninos da Avó. Um abraço bom,
Antonio Naud Júnior

MeninosdaAvo disse...

É sempre bom ter notícias suas António! Sentimos a sua falta assim dos seus textos! Não esqueça de nós...

samari disse...

"Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . .
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo."
(Cecília Meireles)