segunda-feira, janeiro 09, 2006

SESSÃO DE 4/01/06

Realizou-se no dia 4 de Janeiro a 24ª sessão dos Meninos d´Avó. A primeira sessão de 2006 ficou marcada por uma efeméride: o falecimento do poeta António Gancho. Perante este acontecimento a sessão tornou-se numa homenagem ao autor.

António Gancho (1940-2005) morreu na noite de passagem de ano, na Casa de Saúde do Telhal, onde estava internado desde 1967. Nasceu em 1940 em Évora e veio para Lisboa muito jovem, frequentou o grupo do Café Gelo. Da sua vida pública sabe-se apenas que passou a maior parte do tempo em instituições psiquiátricas. A sua literatura apenas se revelou publicamente em 1985 na antologia «Edoi Lelia Doura», organizada por Herberto Hélder e onde se incluíam onze poemas de Gancho. Em 1995 saí um volume com a sua poesia “O Ar da Manhã”, no ano seguinte é apresentada por Álvaro Lapa, uma novela erótica escrita em 1990 ( “As Diotrias de Elisa”).

De seguida ficam alguns dos poemas lidos deste autor lidos na sessão:


Rui Mário

SINTAXE

Aonde a planície já não tiver um sentido
e os campos forem já só o horizonte
aí o teu vestido há-de ser cor esmaecido
e sobre ti a minha fronte.
Por te sobre os joelhos uma flor rubra
por te no lugar das pernas o mais amor que me houver
aí onde a flor deixa o pólen
aí o sémen de mulher.
Por te sobre o sémen o gemido do teu acto
por te sobre o gemido
a planície sem sentido
aí o teu vestido há-de ser cor esmaecido
por te sobre as pernas me dilato.



ULISSES-OLISIPO

Desenham-se no céu os números da solidão
por onde James Joyce conseguiu escrever o romance
Ulisses há-de sê-lo bem o meu coração
eu, a minha solidão, o meu transe

A chaminé na cidade deita o fumo da minha angústia
o meu desespero projecta a minha intoxicação
Ulisses, cidade de Dublin, eu, Lisboa, minha cidade
eu, Lisboa, a chaminé, o meu coração

O fumo sobe que sobe sobe que sobe e enche o ar
cidade de Dublin, Lisboa
também eu te vou cantar

Grande a nostalgia do teu néon luminoso
A sentir-se dentro de mim e a dizer-se que já não posso

Aqui a enorme cidade aqui a tentactular
o meu crime é de estudar o céu que me invade
e onde arranha o arranha-céus.



ARTÉRIA, TU TENS RAZÃO

A única coisa que aprendi meu Deus
a sofrer a desilusão duma passagem de rua
ficar com o lado esquerdo a ajudar a falar
mas a única coisa que eu aprendi.
Que um bocado de vidro me inundasse de luz uma artéria
eu era um bocado de vidro que não inundasse de luz
artéria nenhuma
era uma desilusão a olhar para mim
e dizer movimento de rua
é assim movimento de rua
aí está nós cá estamos nós somos tal e qual
uma desilusão em passagem.
Tinha era ainda mais que tudo isso
um inchaço dum vidro em bocado
espetado em cima de pedra.
Havia um estendal de desilusão a devorar-me
todo com os olhos
eu era uma continuação do meu ser.
Onde um simulacro estava a vantagem
de uma desilusão.
Eu não
Eu cá.
Que um cá estamos considerasse ou não
eu não tinha nada com isso.
Eu fum, eu…
Ah,
Havia é que era eu cá estamos nada disso
eu cá não eu nada eu não tinha eu não tenho
tu quê
nós consideramos.
Onde punha fum
tudo por dentro era duma urânia
tudo por dentro era duma constipação palpável
pelo sentido da pedra e do bocado de vidro.
Não eu cá não vou.
Quem olha descontenta.



TU ÉS MORTAL

Tu és mortal meu filho
isto que um dia a morte te virá buscar
e tu não mais serás que um grão de milho
para a morte debicar

Tu és mortal meu anjo
tu és mortal meu amor
isto que um dia a morte virá de banjo
insinuar-se-te senhor

É-se mortal meu Deus
tu és mortal meu Deus
isto que um dia a morte há-de descer
ao comprimento dos céus.

António Gancho, in «Edoi Lelia Doura», Assírio e Alvim 1985